Vou começar este novo e preocupante assunto com esta narrativa. “Maria, o que houve? O que está te causando tanta dor assim? O que te leva a fazer isso com você mesma, minha filha?”. Dolores, a mãe, pergunta para a filha ao perceber as marcas de cortes em seu corpo, sem entender por que ela faz isso consigo mesma, qual a motivação desta criança? O que ela realmente pretende com isso? Maria se automutilava por ser gordinha e por isso sofria bullying na escola e entre as crianças do condomínio onde morava, por achar que não se encaixava nos padrões sociais de beleza com: “o bonito é ser magra”, ela começou a ter um processo depressivo, se isolando no seu mundo particular, tentou de tudo até bulimia, mas o seu problema com a balança só aumentava, a compulsão alimentar potencializou-se por causa do bullying.
Dolores começou a se perguntar angustiada: Em que ela errara? Onde e quando ela deixara escapar pelas mãos a sua filha querida? Agora que sua Maria está com 11 anos foi que realmente a percebeu, viu que nunca a tinha visto de verdade, e percebê-la assim cheia de dores silenciosas, cheia de sentenças nas quais ela é a juíza e a ré, foi que o desespero tomou conta dela. Mesmo a mãe tendo dedicado sua vida para a criação de sua filha, de ter abdicado de sua carreira de advogada, a profissão que ama, e que pretendia seguir carreira até conseguir chegar na promotoria, cargo que almejava, ter deixado de lado seu futuro promissor, sua emancipação financeira, ela havia colocado todas as suas fichas no projeto “Mãe”, e agora vê sua filha, fruto de seu ventre, de seu amor, com todos estes transtornos que ela está passando, parece um pesadelo, a saúde mental da criança está à beira de um colapso.
Dolores não consegue saber o que fazer, nem qual atitude ser acertada para se tomar sem piorar ainda mais as coisas, chora copiosamente, e se culpa pelo fato de não ter percebido, tendo a certeza de que pouco conversou, orientou ainda menos. E ainda tem outro fator, o social, muitos irão dizer “Como ela sendo advogada, uma pessoa com estudos deixou isso acontecer com a própria filha?”. Em tempo, a narrativa é fictícia, criei esta história para que todos compreendam que ninguém está imune, ou está a salvo, e todo cuidado é pouco, todo conhecimento é pouco, toda ação é ainda válida, só não vale cruzar os braços.
O que é automutilação? É o ato de machucar o próprio corpo deliberadamente. A Automutilação também é conhecida como “Cutting”. Este comportamento leva a pessoa a se cortar, podendo ou não ter o intuito de provocar o suicídio. A ciência sabe é que tais machucados estão linkados de como nosso cérebro processa a dor e a sua recompensa. Assim fica camuflado o sentimento de angústia, a sua dor psíquica. Então vamos aqui discutir o assunto com uma leitura da automutilação em sua relação com os destinos da pulsão e com o conceito de masoquismo desenvolvido por Freud. Existe essa questão do corpo como um veículo de comunicação em várias culturas, sendo elas tanto primitivas, quanto modernas ou contemporâneas. Sempre dentro da história foi possível ser identificado que o corpo tem várias maneiras de se comunicar ou ser uma via de comunicação a ser usada, estes fatores de comunicação, podem determinar níveis sociais, status, fé, cultura, entre tantas configurações possíveis, elas podem ser identificadas por tatuagens, adornos, adereços, pinturas, roupas, danças, gestos, mecanismos usados pelo homem com frequência desde o início dos tempos, para diferenciar sua tribo, povo, etnia, crença, como queiram destacar dos demais.
Tudo isso para muitos, mas parece cena vista em filme ou novela, um enredo que não acontece na nossa realidade. Mas é tão real na atualidade e vem acontecendo cada vez mais entre nossos adolescentes, que por ser algo muito grave e muito sério, precisa ser voltado os olhos de todos para esta situação, tanto o poder público, quanto as famílias tem um papel fundamental para a desconstrução do fenômeno, tentar não deixar que se transforme em uma coisa tão corriqueira que passe a ser vista com normalidade, são tantas explicações que nossos adolescentes dão para estes acontecimentos que parecem ser sem importância para nós, que em muitos não afetariam e não causariam dor alguma, mas como as dores e emoções fazem parte da construção da nossa singularidade, da nossa subjetividade, cada um é afetado de uma maneira diferente da outra pessoa.
Alguns podem chegar a dizer que este fenômeno é desta geração, fruto das múltiplas opções ofertadas a nossos jovens neste século XXI, as redes sociais, internet influenciaram para que tudo fosse normatizado, toda a problemática é muito mais complexa, apenas apontar para a vida moderna e suas mazelas pulsantes e latentes não isenta as gerações anteriores, as outras gerações não praticavam automutilação? Sim, claro que sim, só que sob outra ótica, muito por motivos religiosos, e era algumas vezes de maneiras bem cruéis, pois eram tidos como penitências a cumprir, também era visto apenas em uma pequena parcela dos doentes mentais graves, psicóticos em situações isoladas de automutilação extrema, onde geralmente eram induzidos pelas alucinações que tinham, e com essas ocorrências, ou castravam-se, ou praticavam a enucleação ocular, mas era uma minoria dentre as minorias.
Mas estamos cientes que as novas maneiras e as vítimas do fenômeno neste nosso século XXI mudaram. Hoje ao contrário dos tempos antigos, não são somente os histéricos que praticam a automutilação, nem o alvo a ser atingido no corpo é os olhos ou a genitália, tampouco os motivos, eles não são mais só religiosos e a faixa etária e gênero também mudaram, hoje se concentra em adolescentes e em sua grande maioria do sexo feminino, suas ansiedades, angústias, frustrações, medos, raivas, traumas, recalques estão tatuados com gilete ou algo cortante em seu próprio corpo, deixando estas marcas de suas dores latentes, como lembranças vivas na carne, afinal como Freud e Breuer disseram (1893/1895) em suas primeiras considerações de seus estudos sobre a histeria, onde afirmavam que “O trauma não se constitui como tal no momento da ocorrência de um determinado evento impactante. As consequências destes eventos traumáticos só se estabelecem a posteriori”, ou seja o trauma não se instala logo após aquele acontecimento supostamente traumático, e somente depois quando vem a lembrança, que pode ser despertada por algum vínculo associativo, sendo assim resinificado.
“Mesmo levando em conta as dores, os aspectos agressivos, destrutivos, e em última instância, masoquistas, priorizamos o valor comunicativo e o trabalho elaborativo contido nestes atos repetitivos” (Issa Damous & Perla Klautau)
O ato ao ser feito surge como uma forma de se comunicar, para extravasar em muitas vezes, sendo a própria pessoa o objeto mensageiro. Assim como também pode ser penitenciar-se, punir-se, já que são vias possíveis para a mesma pulsão. Freud estudou em dos seus casos batizado por Emma (1950/1996) a reboque da teoria da sedução. Onde os danos psíquicos oriundos do acontecimento traumático, se relacionam a eventos externos de cunho sexual, onde Emma estabeleceu um vínculo associativo: o Riso, e mesmo em eventos e época completamente diferentes um do outro, o Riso a fez associar tais eventos, o Riso que ela emitiu. Emma relatou em sua terapia que ao entrar em uma loja dois vendedores riram e ela supôs que riam dela, ou de como ela se vestia, isso na sua infância, na adolescência em plena fase da puberdade Emma foi em uma confeitaria e lá ela teve sua genitália apalpada por cima da roupa pelo proprietário da confeitaria, ela sorriu na hora, e afirmou que ainda voltou a confeitaria algumas vezes depois, nas duas ocasiões ela estava desacompanhada dos pais, Freud percebeu que o riso foi o vínculo associativo para a repetição, e estas lembranças despertou nela o que ela não era capaz, a liberação sexual, e isso se transformou em uma angustia.
Hoje as queixas são diversas, mas em sua grande maioria vem da não aceitação da pessoa nos meios que ela convive, entre colegas do colégio, da igreja, do trabalho, do condomínio ou da rua em que mora, entre outras situações, o bullying, o desprezo, o preconceito, são fatores preponderantes para o acontecimento traumático, e estes traumas causam o desamparo do eu, deixando a pessoa vulnerável e fragilizada, gerando ansiedade, depressão, pânico.
Automutilação na escola, é hoje um grito social, o silêncio da lâmina entre os adolescentes só tem crescido e acendeu um sinal vermelho nas políticas públicas, professores, gestores, todos em alerta para um evento que tem se multiplicado. Há muito é pedido a presença de psicólogos e assistentes sociais nas escolas, e agora com a lei federal nº 13935 que determina como obrigatoriedade a presença de ambos nas escolas, assim quem sabe poderemos ver nossos adolescentes com um apoio psicoterápico mais presente, e com isso possa ser visto uma redução deste crescimento do fenômeno em questão.
Automutilação e seus sinais. Nem sempre é possível perceber, muitos pais se culpam por não ter notado antes, mas não é assim tão fácil, fiquem atentos a algumas situações muito presentes entre as pessoas que estão se automutilando:
- Uso de casacos ou blusas de mangas longas mesmo no calor.
- Vários acessórios nos pulsos, como pulseiras, adornos e adereços.
- Passar muito tempo no quarto de portas trancadas.
- Irritabilidade ou instabilidade um pouco diferente do costume.
- Curativos com sangue no lixo, ou manchas de sangue no banheiro.
A adolescência é mesmo uma fase muito delicada, já que é nelas que surgem as
famosas crises de identidade, estando sempre mais vulneráveis sentimentalmente, afinal como afirma a psicanálise o adolescente está de luto da infância, e corre em uma busca incessante de uma nova identidade para si. Uma sensação de vazio e mistura de sentimentos que podem desencadear transtornos como ansiedade e ou depressão, fique atento a:
- Falta de apetite
- Falta de sono
- Apatia
- Choro frequente
O bullying e agora até o novo formato do fenômeno, o cyberbullying, que
é uma forma de bullying nas redes sociais, bullying-virtual, que é feito em forma de bloqueio, cancelamento, e isso quando não tem os tradicionais xingamentos, onde os xingadores estão com a proteção das redes sociais fala o que quer da pessoa, muitas vezes de forma cruel, isso pode constranger intensamente, levando a vítima a sentir-se uma pessoa de pouco valor, incapaz, daí pode surgir como consequência a automutilação. É visível que nossos adolescentes hoje são muito frágeis, quase sempre muito protegidos e mimados, focam no momento e no quanto é doído pra ele aquilo que está passando, na tentativa de parar este determinado sofrimento, pensam que causar uma dor mais intensa, sentirá o fim dos efeitos desse sofrimento, assim o sofrimento ficará menor do que é. É aí a tal explicação que se quer dar ao cérebro, uma bendita recompensa.
Caso seu filho(a) ou alguém que você conheça esteja se automutilando não surte, não grite, não xingue, nem brigue, não perca a cabeça, é difícil mas é a única maneira para criar uma vínculo de confiança e com isso seja aceito para conversar sobre o assunto, de início não se desespere, respire fundo, dê um tempo para aceitar a situação e construir uma estratégia para ajudar na solução para o fenômeno, é fundamental ter um diálogo fluido e compreensivo, não julgue, não condene, acolha, tenha empatia, se for fazer perguntas que sejam diretas, tipo: “Eu percebi os arranhões que você está tentando esconder”. Tente descobrir os motivos que o levaram a cometer a automutilação ou cutting, nunca o force a falar caso perceba o desvio do assunto, deixe à vontade.
Em alguns casos é preciso acompanhamento psiquiátrico e psicológico, assim que conseguir convencer vá junto em busca de ajuda, peça orientações aos profissionais para o porvir e como lidar com esta situação em casa. Fique atento a formas de incentivo que possam existir como internet, tv, etc. Descarte os objetos cortantes ou guarde em lugar que não seja de fácil acesso, se engaje no processo terapêutico também, participe para que ele(a) não se sinta só. A automutilação deve ser levada a sério. Saiba que cada caso é único e as informações dispostas na internet, só servem para orientação inicial, a psicoterapia surte um efeito mais promissor. Em casos mais graves tem o CVV – Centro de Valorização da Vida que pode orientar melhor no processo e conduta.
REFERÊNCIAS
Araújo, Juliana Falcão Barbosa de; Chaterlard, Daniela Scheinkman, Carvalho, Isalena Santos, Viana, Terezinha de Camargo. O CORPO NA DOR: AUTOMUTILAÇÃO. MASOQUISMO E PULSÃO disponível em: pepsic.bvsalud.org › pdf › estic (2016) acessado em: 11/11/2021 as 11h
Damous, Issa; Klautau, Perla. MARCAS DO INFANTIL NA ADOLESCÊNCIA: AUTOMUTILAÇÃO COMO ATUALIZAÇÃO DE TRAUMAS PRECOCES. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/tpsi/v48n2/v48n1a07.pdf (2016) acessado em: 13/11/2021 as 9h
Roman, Maricléia dos Santos. AUTOMUTILAÇÃO NA ADOLESCENCIA: MEU FILHO ESTÁ SE CORTANDO, O QUE FAZER?. Disponível em: www.https:// http://blog.saudementalesucesso.com.br/automutilacao-na-adolescencia-meu-filho-esta-se-cortando-o-que-fazer/ (2019) acessado em 13//11/2021 as 12h.
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